POEMA DA VIDA
Frederico Spencer
I
Não te queria assim:
tatuada te trago no braço
do tempo prisioneiro:
o teu compasso me fere
o relógio marca meu tempo ligeiro.
Em tuas águas
minhas estradas me fazem a ferro
não te consigo assim
devagar entre os dedos
escorres e fundo pisas
meu coração apressado
vago paralisa.
II
Vago
em tuas águas
rítmica e metrificada - alheia
me levas em teu desenho
à terras de lodo e sal sombreadas.
No meu caderno rascunho
teu dorso teu cetro
com meus pincéis
te traço com a dor de seus metros.
III
E vago em tuas veias
no sal de tua saliva - beijo
tua carne salina
mesmo molhado trago
nas mãos teus veios
que guardastes a sete chaves
no meu coração à ferida
no prumo emprestado
não consigo seguir, minha vida
na noite desenhastes consumida.
IV
De tua saliva
desenhei meus traços
numa tela pura e imprecisa
o rugor de tua língua
salina - tatuagens
com tuas garras
me prendes e me fascinas
com seu ar de fera
repousas no meu jardim
amarga vida.
V
E no meu jardim
não descanso nem pasto
suas margaridas de plástico
dormem no centro do meu corpo
as marcas que desenhastes para mim
com minhas armas desembainhadas
parto sem metro nem fim - confusas
tuas águas correm dentro de mim.
VI
E nesta vida
nem descanso nem parto
já se foi o meu jardim – tarde
hora durmo noutra permaneço
soturno entre dálias e espadas
de São Jorge com seu arco
traço em tua pele ínfimo espaço
busco um pedaço de mim
em teus pincéis resquícios
da tinta de tuas águas – sem cor
à nanquim.
VII
Mesmo à nanquim
e com ínfimo espaço
dentro da noite cruzo
teus horizontes - roubo
teus aços e teço fronteiras
muito além de tuas margens
finco o que sonhei
para minha vida inteira
ver você passar líquida e morna
demarcando minhas fronteiras
e com tua seiva alimentar
minhas fruteiras.
VIII
Com minhas frutas parto
de tua saliva cheias
sangrando com o meu barco
por entre tuas veias
desta vez capitão com meus arcos
com o grafite e com as telas
que teci em tuas luas cheias
enquanto dormias descobri
teus segredos guardados
e que não entregavas para mim.
Com as frutas parto
mesmo sem teu cheiro
e o líquido que escorre em mim
deixo para trás o descanso
de tuas margens na pele tatuada
em mim só o desejo
de navegar o meu próprio fim.
IX
E o meu fim
em tua pele deixará minhas marcas
mesmo sabendo de tuas alquimias:
não ter o medo de ter navegado
em tuas águas ser consumido
depois de terríveis batalhas
encontrar o útero da mãe como medalha:
um porto conhecido ou outros
ainda não navegados
riscar em tua pele:
com o grafite invento
minha navalha.
X
E com o cinzel e meus cadernos
coloridos por esse tempo
com o grafite na mão e tuas rotas
desenharei assim os mapas:
a solidão que é navegar
em ti insone o tempo passa
como ilhas, no silêncio
rasgo minha fantasia de capitão
recolho minha vela quebrada
escuto como música
para onde o vento sopra.
XI
Para onde o vento me levar
levarei comigo teu sal, teu grito
em tua areia, meus passos remidos.
Onde beberei tua água
será de gozo teus gemidos
minha nau nas tuas entranhas
seguirá seu destino
com seu lápis nas mãos
não obedecerá tua lógica, teu trino
escriturando noutro caderno
seu destino.
XII
Refém de tuas horas
e de tuas rotas que me levam
a lugar nenhum seguro
em tua crina adormeço
no teu embalo entrego
minha roupa de capitão
minha espada de ferro
minha nau, minha cápsula lunar:
Aldebarã arde no céu - um sinal:
a guerra que não venci
teu tempo, teu metro
dorme no meu caderno
o poema que não escrevi – juro
não te queria assim.