VELOCIDADE, SOLIDÃO E POESIA

18/05/2015 15:40

Frederico Spencer

 

Num fragmento do poema “ORAÇÃO PELO POEMA”, o poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo, considerado como um dos maiores da língua portuguesa, nos fala: “a cem quilômetros por hora/solto a direção do automóvel/para escrever alguma coisa/mais urgente que minha vida”.

Nesse instante do poema, o poeta desiste da vida ou corre o risco de perdê-la por dois motivos aparentes: para não perder o verso que o atravessava naquele momento ou porque foge da angústia da solidão que o entorpece. “A cem quilômetros por hora” nega a própria existência se esta não for pela poesia que o persegue, sombra e mito da saga de se nascer poeta.

É na solidão e na velocidade das ocorrências das coisas da vida que a poesia eclode e quebra a casca do ovo que a aprisiona. Sobressaltado, o poeta se presta à gestação precipitada do seu animal simbólico mal criado, dono de suas verdades. Assim acontece em “NASCE O POEMA”, de Ferreira Gullar: “e a poesia irrompe/donde menos se espera/às vezes/cheirando a flor/às vezes/desatada no olor/da fruta podre/que no podre se abisma”.

Há sempre, na gestação da poesia, a condição prematura do vir a ser no mundo - seu gesto ditatorial. Urgência e razão se contextualizam no momento onde acontece a quebra da castidade do papel e a poesia materializa-se como gente, para matar a fome do mundo. O poeta simplesmente dedica-se à dor do parto e apara sua sangria, qual o Édipo, olha sua cria no seu momento mais delicado e o reconstrói para soltá-lo no mundo.

Nas suas mais variadas formas de expressão, a poesia reclama seu momento único para nascer dentro da solidão, como está em Belchior: “dentro do carro/ sobre o trevo /a cem por hora, ó meu amor/só tens agora os carinhos do motor". Nesta busca de um infinito que demora a chegar, há algo que se perdeu na profusão da velocidade e dos afetos, onde o tempo corrói os amantes, deixando a solidão como o momento necessário para nascer, desobedecendo à ordenação de um mundo mecânico.

Casada com a música, a poesia assume outra identidade: “Vou cavalgar por toda a noite/numa estrada colorida/usar teus beijos como açoites/e a minha mão mais atrevida”, esta canção de Roberto Carlos, além de outras, de tantas velocidades e estradas nos levam a uma procura suicida pelo amor através de versos que requerem a supressão das horas, como condição de se vencer a dicotomia espaço/tempo, onde o amor dorme descansado. E sonhamos.

A poesia vence o poeta e a barreira do tempo porque não obedece fronteiras nem os limites do humano, possibilitando-nos viajar em suas naves/metáforas, para além do arco espaço/tempo concedendo-nos a possibilidade de viver, mesmo assim, com os pés no chão. Parafraseando o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, a “ave/bala” encontrará o destino certo porque sempre haverá um verso perdido a nos espreitar.